Com uma cultura intervencionista e pouca informação, parto no Brasil é vítima de distorções. Mulheres se organizam para resgatar o sentido profundo do nascimento humano
Por Maurício Ayer, Cristina Toledano e Glauco Faria
Histórias como as de Luana e sua filha são ainda raras no Brasil, e não só porque se passa em casa. Dificilmente se permite que um trabalho de parto se prolongue tanto tempo, mesmo que a mãe e o bebê estejam bem. Durante milênios e até recentemente, se as mulheres deram à luz sem acompanhamento médico, com uma parteira e outras mulheres mais experientes, hoje a gravidez e o parto são tratados quase como uma enfermidade. O uso de medicamentos, os cortes e os procedimentos cirúrgicos são considerados como parte “natural” do processo e utilizados de maneira rotineira. Na maioria das vezes, no entanto, quando seriam desnecessários ou até prejudiciais.
“Infelizmente, tanto práticas cientificamente comprovadas como benéficas não são aplicadas em muitas ocasiões, como também práticas que são comprovadamente maléficas ainda continuam sendo aplicadas, como a episiotomia [corte realizado na região vaginal para ampliar sua capacidade volumétrica], o uso de ocitocina [hormônio usado para aumentar as contrações e acelerar o trabalho de parto], romper a bolsa das águas”, lamenta o médico obstetra e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Jorge Francisco Kuhn dos Santos. “Todas essas práticas têm indicações médicas. O problema é quando começam a ser usadas como rotina.”
O exemplo mais eloqüente é o das cesarianas. No Brasil, o Ministério da Saúde registra que 42,72% do total de nascimentos acontecem na mesa de cirurgia, o que nos coloca na posição de vice-campeões mundiais, atrás apenas do Chile. O estado de São Paulo é o líder nacional no quesito e atingiu o índice de 52,99% de cesáreas. Mas segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), os casos em que a cirurgia seria de fato necessária não deveriam ultrapassar 15% do total de nascimentos.
Os números incluem o Sistema Único de Saúde (SUS), cujas taxas são consideravelmente menores que no sistema privado [ver quadro]. Se observarmos apenas o sistema atendido pelos planos de saúde, aí a situação é aberrante. Oito em cada dez partos neste setor acabam em cesáreas, média que pode ultrapassar 90% em muitos hospitais.
Muita gente não sabe, mas uma cesárea representa em relação ao parto normal um risco seis vezes maior de morte para as mães, e até dez vezes maior para os bebês. “Como a cesariana é hoje muito mais segura do que 50, 70 anos atrás, cria-se a expectativa de que ela não tem riscos”, avalia Kuhn. Isso não significa que o parto normal não tenha riscos, mas é sem dúvida o parto mais indicado para gestantes e bebês saudáveis, que evidentemente são a grande maioria.
Diante desse quadro, grupos de mulheres se mobilizam em rede, em busca de reconquistar o protagonismo neste processo. “Esse movimento é mundial”, afirma Ana Cristina Duar¬te, a doula do início da reportagem que também é coordenadora do Grupo de Apoio à Maternidade Ativa (Gama), que funciona no bairro de Pinheiros, em São Paulo. “No Brasil ele existe há uns 20 anos, mas nos últimos cinco tem crescido exponencialmente. A cada ano, é como se duplicassem as iniciativas, o número de mulheres que têm parto em casa, o número de mulheres que experimentam o parto sem analgesia, a procura por médicos que oferecem um tratamento diferente”, garante. O Gama promove encontros de mães e gestantes para compartilhar experiências, difundir informações e esclarecer dúvidas. Outras redes têm atuação nacional, como a Parto do Princípio, que organiza grupos em diferentes locais dos país.
Foi frequentando os encontros do Gama que Luana Arnhold fortaleceu sua decisão de ter a filha em casa. Mas não foi fácil, teve que deixar o ginecologista que a acompanhava havia anos e buscar um obstetra que aceitasse os seus termos. Ela teria todas as condições, físicas e econômicas, de ir a um bom hospital. A opção pelo parto domiciliar se consolidou ao pensar que seria afastada de sua filha pouco depois do nascimento. Mesmo que alguns hospitais admitam que o bebê passe a noite com a mãe, sempre há um período de separação.
Uma cultura da cesárea
Mas se na maioria dos casos seria possível esperar e deixar o processo natural acontecer, por que tantas intervenções?
De início, há o medo da dor, razão para tantas opções pela cesárea e pedidos de anestesia. Jorge Kuhn explica que “a dor do parto começa num momento, tem hora para terminar e a partir daí não tem mais dor. Se a mulher não levou ponto, acabou. Já a dor de uma cesárea começa quando acaba o efeito do anestésico e não tem dia para acabar”. Quer dizer, pela dor, talvez não seja bom negócio. Além de que “ela se submeteu a uma cirurgia de médio para grande porte e vai ter que cuidar de um bebê que depende quase 100% dela para amamentar”, acrescenta.
Rosana Gomes da Silva, 31 anos, confirma essa opinião. A terceira de seus seis filhos, Gabriele, nasceu de cesárea no hospital Sorocabano, no bairro da Lapa, em São Paulo. “Você fica superlimitada, tem um bebê pra cuidar. Fica três dias no hospital, quando você volta pra casa, os outros filhos estão supercarentes, querem colo e você não pode porque tem os pontos da cesárea”, conta.
A doula e educadora perinatal Cristina Balzano acredita que “se a mulher está num ambiente em que se sente segura, tem o apoio afetivo do companheiro, de sua mãe, de alguém próximo, e o apoio profissional de uma acompanhante, como a doula, a dor vai ser muito menor, perfeitamente tolerável”, avalia. Ou seja, seria preferível investir no conforto, privacidade e segurança da mulher, ao invés da anestesia, que também oferece riscos. A mulher se prepara para uma dor terrível e já fica tensa, o que contribui bastante para confirmar suas expectativas.
Rosângela Alves de Souza, 31 anos, que também freqüenta as reuniões do Gama, teve seu filho Gabriel num parto humanizado na Maternidade São Luiz, em São Paulo. “Passei por cinco obstetras, e todos me diziam que eu não ia agüentar a dor, que tinha que tomar anestesia.” Foi conversando com outras mulheres, principalmente com sua doula, que passou a confiar em si mesma para realizar o parto. Mesmo assim, se preparou tanto, que quando começou o trabalho de parto não acreditou que a dor era aquela. “Eu pensava que ia ser mais forte, que eu ia perder o juízo”, e esperou em casa. Quando chegou ao hospital já estava com dilatação total do colo do útero, sinal de que o momento estava próximo. “Quase que nasce no carro!”
Em todo caso, há uma percepção socialmente arraigada de que as intervenções são adequadas sempre que algo não vai bem, o que acaba se tornando um fator de pressão sobre o obstetra. O pediatra e neonatologista Carlos Eduardo Corrêa, o Cacá, acredita que “não se muda a taxa de cesárea, se muda a percepção social do parto e do nascimento”. Se alguma coisa dá errado, “aí existe o senso comum das coisas que deveriam ser feitas. Quer dizer, se o bebê passa mal num parto, todos ao redor vão questionar o médico ‘por que não foi uma cesárea?’”, testemunha.
Isso tem até mesmo implicações jurídicas. “Qualquer coisa que não seja 100% no parto normal pode ser motivo para que o médico seja processado. Ao passo que se ele fizer uma cesárea e matar todo mundo, aí é uma fatalidade, ele fez o que era melhor, usou a máxima tecnologia”, sustenta Ana Cris. Quer dizer, o médico, por segurança, preferiria indicar a cirurgia, mesmo sabendo não ser absolutamente necessário.
E há ainda razões econômicas. Ana Cris defende que “precisa haver menos ganância e um pouco mais de olhar sobre a mulher. Um plano de saúde paga hoje R$ 250, R$ 300, R$ 350 por um parto”. Isso para ele sair de madrugada, eventualmente perder o fim de semana, perder a convivência com a família, perder um dia inteiro de consultório. “Quer dizer, não compensa para o médico de plano de saúde fazer parto normal”, avalia.
Está claro, portanto, que a sociedade precisa discutir o parto. Para que o nascimento humano possa voltar a ser vivido na plenitude do seu sentido, como aconteceu com Luana e Rosângela. “Eu me sentia em estado de êxtase, é como um orgasmo. A dor você esquece logo em seguida”, garante Rosângela.
O parto no SUS
Rosana Gomes da Silva teve dois partos normais e quatro cesáreas, todos pelo SUS. Sua experiência dá uma idéia da realidade dos hospitais públicos. Na prática, o atendimento varia bastante de um plantão para outro, mas algumas práticas são rotina, como as salas de pré-parto coletivas e o uso de soro com ocitocina, um “remedinho para aumentar as contrações”, que aumenta proporcionalmente as dores. “Na sala de pré-parto, você fica com seis, sete mulheres gritando. E ainda tem que ouvir profissionais de saúde dizerem que ‘quando estava fazendo ele não ficava dando esse escândalo’”.
De todas as experiências, a melhor foi a segunda, um parto normal sem problemas. A mais difícil foi a primeira, em que usaram fórceps, instrumento parecido com um grande alicate, cuja função é abrir a mulher ou puxar o bebê. Ficou toda a tarde e a noite na sala de pré-parto, recebendo soro. “Estava sozinha, ninguém podia ficar comigo. Você não tem noção do que pode acontecer, se sente péssima”, recorda Rosana. Embora tenha feito todo o pré-natal, o parto nunca foi discutido e ela não fez nenhuma preparação especial para esse momento.
“Se você não vier, vou parir sem sua ajuda”
Mary Zwart é holandesa, e parteira desde 1969, tempo suficiente para assistir mais de 4 mil partos. Neste depoimento, conta como é o atendimento ao nascimento na Holanda, país referência em partos naturais.
“Na Holanda, as mulheres gostam de parir em casa, desde que seja um local seguro. A parteira é formada para fazer uma classificação de riscos na gravidez. Aquelas que têm gravidez de baixo risco podem escolher onde querem parir e a parteira assegura-lhes essa escolha. Assim, em nosso país o parto é um evento ao mesmo tempo social (80%) e médico (20%). Como parteiras, temos boa formação, então a qualidade do atendimento é baseada no ‘estado da arte’.
Quando a mulher não quer parir em casa por razões não-médicas, a parteira a acompanha ao hospital. A parteira assiste o parto, e uma enfermeira do hospital assiste a parteira. Em casa, a parteira é também assistida por uma enfermeira especializada, que ajuda a mulher durante a primeira semana após o nascimento, em amamentação, cuidados com o bebê e com a casa por, pelo menos, 42 horas. O objetivo é ajudar a mãe e sua família a adaptar-se à nova situação e criar vínculo.
Cinco anos atrás, houve uma falta de parteiras que implicou a necessidade de uma concentração do atendimento, oferecido então nos hospitais. As mulheres não tinham escolha, mas não gostaram nada dessa história. Algumas diziam ‘se você não vier à minha casa, eu vou parir sem a sua ajuda!’. Então, são realmente as mulheres que fazem o nosso sistema!
Assim, hoje, 85% de todas as grávidas vão à parteira porque não há nenhuma razão para irem consultar um médico especialista, o obstetra. A partir da classificação de risco, 30% são encaminhadas para o obstetra e, dos 70% restantes, metade fica em casa e metade vai ao hospital aos cuidados da parteira.”
Para saber mais:
Grupo de Apoio à Maternidade Ativa – www.maternidadeativa.com.br Rede Parto do Princípio – www.partodoprincipio.com.br Amigas do Parto – www.amigasdoparto.com.br Doulas do Brasil – www.doulas.com.br
Rede pela Humanização do Parto e do Nascimento – www.rehuna.org.br Associação Nacional de Doulas – www.doulas.org.br
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